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Ocupações Alto da Conquista e Marielle Franco

A frente de trabalho nos Territórios Marielle Franco e Alto da Conquista está vinculada ao projeto de extensão “Habitar Margens: entrelaçando memórias, lutas e políticas do cuidado em territórios populares e negros de Salvador”, que teve como foco a potência formativa e ético-política dos cruzamentos entre distintas atuações e territórios populares e negros da cidade. Também teve como horizonte a experimentação de metodologias efetivamente partilhadas, pensadas não apenas como lócus de práticas, senão também como espaços de produção de conhecimentos sobre a cidade e suas margens, mantendo o foco na potência formativa.

 

O encontro entre a equipe Margear e as mulheres das ocupações urbanas Alto da Conquista e Marielle Franco, situadas em Simões Filho, região metropolitana de Salvador e vinculadas ao Movimento sem Teto da Bahia (MSTB), iniciou-se por intermédio de Juliana Santos, coordenadora do MSTB e militante do Coletivo Mulheres Guerreiras Sem Teto, com quem o grupo Margear já tinha uma interlocução prévia.

As ocupações Alto da Conquista e Marielle Franco são parte do MSTB e surgem em contextos de luta por moradia, em 2007 e 2019, respectivamente. Lado a lado, as ocupações se localizam no Bairro Parque Continental, em Simões Filho, Bahia, e contam atualmente com cerca de 400 famílias, que estão submetidas a um processo de reintegração de posse iniciado em 2007. A luta das moradoras¹ para permanecer no território em disputa busca garantir o direito à moradia para uma população em situação de vulnerabilidade social, sendo o processo de ocupação marcado por diversas tentativas violentas de remoção.

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 Quando nos referimos ao coletivo de pessoas que colaboraram com este projeto optamos por utilizar a flexão de gênero no feminino, pois somos em maioria mulheres e preferimos não reproduzir a herança patriarcal, na qual o masculino opera como concordância em gênero universal. [Ver KILOMBA, G. “Carta da autora à edição brasileira”. In: KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de janeiro: Cobogó, 2019].

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Dada a relação de proximidade com o centro da cidade, o território dispõe de equipamentos e serviços públicos urbanos em seu entorno imediato, sendo localizado próximo ao centro da cidade de Simões Filho. No entanto, a maior parte das ocupações não conta com infraestruturas urbanas providas pelo Estado, como água encanada, iluminação pública, coleta de lixo e tratamento de esgoto, sendo estas, bem como as moradias e espaços coletivos, autoproduzidas pelas moradoras. A maioria das casas da ocupação Marielle Franco, parcela mais recentemente ocupada, são construídas em madeira, madeirite, taipa, blocos e paletes, e as casas de Alto da Conquista são majoritariamente edificadas com blocos cerâmicos, demonstrando grande diversidade na composição material do território. Além das moradias e ruas que compõem as ocupações, há um campo de futebol, uma escola e uma cozinha coletiva. A Escola Maria Carolina de Jesus, construída durante a pandemia de COVID-19, em 2020, e gerida pelas moradoras, é um local de grande importância para as ocupações, tendo sido a primeira conquista coletiva do território. 

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A produção coletiva dos materiais e documentos compostos durante o projeto pretendeu potencializar as lutas das ocupações Alto da Conquista e Marielle Franco por moradia e permanência, dando visibilidade à luta cotidiana das moradoras para garantirem e defenderem seu direito à cidade. Ao demonstrar as múltiplas dinâmicas, complexidades, lutas e inventividades mobilizadas no território, buscamos invalidar os violentos modos de intervir nestes contextos, posicionando-nos a favor da efetiva regulamentação e reconhecimento dos territórios Alto da Conquista e Marielle Franco, de modo a garantir o cumprimento da função social da propriedade urbana e da moradia social nos centros urbanos, bem como o direito das mulheres com as quais dialogamos.

processos metodológicos

As atividades desenvolvidas neste projeto de extensão ancoraram-se nas experimentações teórico-metodológicas e inter/transdisciplinares que vêm sendo construídas coletivamente no grupo Margear/PPGAU-UFBA e em colaborações urbanas anteriores. Essas atividades têm os encontros de pesquisa² como método de construção coletiva de ações e conhecimentos que possam contribuir para as lutas urbanas, além da construção de laços entre equipe do projeto e moradoras, universidade, movimentos e territórios.

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Conceito cunhado por Gabriel Feltran, para ler mais a respeito: FELTRAN, Gabriel. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp/CEM/CEBRAP, 2011.

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Adiantamos que pensar o trabalho coletivo entre universidade e outros territórios, em especial entre mulheres, da equipe técnica e das moradoras, exige levar em consideração dimensões ligadas à reprodução da vida cotidiana, dando especial atenção aos ritmos, atividades e demandas conectadas às necessidades de gênero - seja na criação dos filhos, atividades domésticas, preparação de alimentos para a família, trabalho produtivo e sonhos de futuro para as crianças. Em nossos encontros, sobretudo pelas demandas de cuidado das mulheres, as crianças estiveram ativamente e potencialmente presentes para confecção destes materiais.

A primeira oficina, de reconhecimento, efetivou-se como um encontro de aproximação às trajetórias das moradoras e à composição de uma cronologia do território a partir da construção de uma linha do tempo colaborativa. Foram elaborados registros dos marcos temporais das trajetórias individuais em relação ao território (deslocamentos habitacionais e ocupacionais, chegada na ocupação, construção da moradia, etc.) e da própria história de resistência e conformação material das ocupações. Utilizamos uma grande cartolina fixada ao quadro da Escola Maria Carolina de Jesus e, em uma roda de conversa, documentamos as narrativas mobilizadas.

Após essa primeira oficina, tivemos um encontro entre as mulheres no qual realizamos uma caminhada coletiva de reconhecimento do território, tendo como guias as moradoras, que nos apresentaram os locais demarcados como importantes na constituição histórica e cotidiana das ocupações. As moradoras mais antigas relembraram memórias, disputas e acontecimentos marcantes desde o início da conformação do território e relataram os processos de transformação que já são visíveis desde quando chegaram no território. Também pudemos nos encontrar com dimensões materiais que compõem as moradias, enfatizando a diversidade de materiais de construção empregados, bem como com os circuitos econômicos mobilizados no cotidiano a partir dos “quintais produtivos”, marcados pelo plantio de verduras, frutas, plantas sagradas e medicinais, flores e folhagens ornamentais que tanto decoram suas fachadas e varandas, quanto garantem a sobrevivência das moradoras, as trocas entre elas, a venda de produtos em mercados e feiras, ainda mantendo vivas as memórias e saberes ancestrais de estética, afeto, cuidado com a saúde, práticas religiosas de matriz africana e cultivo da terra. Ainda, pudemos documentar ofícios que associam-se diretamente às moradias: como de costura, manicure, trançagem, cozinha, construção civil, marcenaria e reciclagem.

Outras colaborações se fizeram nesta caminhada, agregando a assessoria técnica de Victor Ribeiro Ferreira e Keylane Dias, com suporte do operador de drone Danilo Sena, no desenvolvimento do memorial descritivo e do georreferenciamento do traçado da poligonal da área das ocupações. Estes documentos, além de contribuírem com nosso trabalho de cartografia coletiva e servirem como subsídio para as ocupações e outras coletividades que se interessam nas práticas coletivas junto ao território, podem também ser mobilizados como instrumentos de luta nas disputas judiciais em curso. Esta instrumentalização, na medida em que conta com o respaldo da universidade pública, pode somar forças e potencializar as lutas urbanas.

Na segunda oficina, na Escola Carolina Maria de Jesus, foi elaborado um mapeamento coletivo das ocupações que compreenderia tanto o espaço físico quanto às relações com e no território e seu entorno. Levamos a fotografia aérea obtida na visita anterior fixada à uma base de isopor, fotografias impressas e ícones referentes às moradias, suas/seus moradoras/moradores, ofícios e serviços, quintais, comércios, entre outros. As fotografias impressas mostravam diferentes locais da ocupação e tinham o propósito de facilitar a leitura da imagem aérea, de modo que as moradoras pudessem localizar e documentar coletivamente o território e suas práticas através dos ícones. Dando continuidade, realizamos uma terceira oficina na qual, além da revisão/complementação da cartografia iniciada na oficina anterior, compusemos um mapeamento do entorno da ocupação. Levamos uma imagem aérea em escala reduzida, com maior abrangência do entorno,  fixada em uma placa de isopor e ícones referenciando mobilidade urbana, equipamentos e serviços públicos coletivos, lazer e percursos habituais. 

A quarta oficina visou a composição de imagens sobre a ocupação, de modo a dialogar com a linha do tempo e com os mapeamentos realizados anteriormente. A atividade pretendeu a composição de imagens a partir da perspectiva das moradoras sobre seus territórios, buscando rememorar fotografias que não foram tiradas e imaginar/projetar futuros almejados, além de documentar imageticamente o cotidiano nas ocupações. Levamos revistas, tesouras, papel A3, cola e imagens da ocupação (tiradas por nós e enviadas pelas moradoras), nos dividimos em pequenos grupos e realizamos a composição de cinco colagens seguindo os seguintes temas, estabelecidos a partir de assuntos recorrentes nas últimas oficinas: Lutas, disputas, conflitos em torno da construção/surgimento das ocupações e da permanência; Cotidiano, relações de vizinhança nas ocupações, moradias, ofícios e saberes; Moradias e Desejos de futuro para as ocupações;  Escola Maria Carolina de Jesus e Cozinha coletiva; As crianças nas ocupações.

Contar sobre as histórias e percursos das ocupações, desde e com aquelas que habitam e as produzem cotidianamente, evidenciou dimensões de constituição e manutenção das casas, dos investimentos nos trabalhos, das redes sociais e das relações que são construídas, desconstruídas e nutridas no cotidiano, revelando também modos de vida que alimentam e possibilitam o fazer-cidade - sobretudo nestes territórios, onde os discursos do senso comum invisibilizam as tantas tramas que constituem estas urbanidades. “Ocupar”, “organizar” e “resistir” foram algumas das importantes palavras elencadas pelas moradoras para contar a história das ocupações durante nossos encontros.

Por fim, embora não tenha havido uma oficina com tempo prolongado e metodologia específica para dialogar com as crianças, todos os nossos encontros contaram com atividades de desenho, recreação e/ou acolhimento para elas, que acabaram evidenciando, a partir dos produtos gerados, que os desejos de futuro para as ocupações não são somente dos adultos.

Elaborações Coletivas

Os impactos deste projeto visaram o alcance, primordialmente, das moradoras, potencializando suas lutas por direitos urbanos que pautem dimensões de classe, gênero e raça, reconhecendo suas arquiteturas, conhecimentos, conquistas, estéticas e resistências e documentando-as. Neste sentido, o projeto Habitar Margens, na frente de ações nas ocupações Marielle Franco e Alto da Conquista, possibilitou a construção de produtos como a cartilha “Memórias de luta, memórias em luta: as ocupações Alto da Conquista e Marielle Franco”, congregando, registrando e documentando as memórias, histórias, lutas, desejos de futuro das moradoras, formas e sentidos de habitar que são construídos, cotidianamente, nos territórios de Alto da Conquista e Marielle Franco; e uma linha do tempo das ocupações entre os anos de 2007 e 2023, reconstruindo o processo de ocupação do território a partir das trajetórias individuais mobilizadas pelas mulheres que compuseram a primeira oficina MARGEAR + MSTB. Tendo também viabilizado a produção de imagens aéreas das ocupações e o traçado da poligonal do conjunto exercida por outros profissionais.

Nossos encontros, como espaços de produção coletiva de conhecimento, alcançaram êxito também enquanto e durante estes processos. Além das partilhas mobilizadas nos encontros, sobretudo centradas nos debates de habitar, margens, gênero, raça, cuidado, memória, território, moradia e cidade, estes espaços de troca promoveram também o reconhecimento, enredamento e intercâmbio de experiências entre as mulheres com as quais nos encontramos, potencializando suas lutas coletivas e promovendo importantes passos no sentido do 'autoconhecimento político comunitário', nos termos de Suzany Varela, moradora da Ladeira da Preguiça, em Salvador.

Desde a universidade, a aproximação com as táticas, trajetórias e histórias das mulheres que produzem e habitam Alto da Conquista e Marielle Franco nos tem ajudado a compreender processos e elaborar reflexões que, dificilmente, seriam possíveis a partir apenas da pesquisa acadêmica convencional - e que nem sempre respondem à métodos e técnicas de investigação prontas e não permitem acompanhar as dimensões da realidade que são acionadas no cotidiano. Ressaltamos a importante contribuição em torno da construção coletiva de metodologias e linguagens de colaboração entre universidade e coletividades e territórios populares e negros, potencializando a tessituras de laços, especialmente desde a aliança com o MSTB, também abrindo espaço para continuidades e colaborações posteriores, tais como a  

Estes encontros têm, por fim, contribuído teórica, metodológica e criticamente com o progressista acervo de pesquisas e ações que se fazem desde a Universidade Federal da Bahia, ainda promovendo a publicização científica, na defesa de sua universalização.

Processos metodológicos
O território
Elaboraçoes coletivas

© 2024 por Luísa Caria e Grupo Margear

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